Olímpia e o amor*




Olímpia não pensava muito no próprio destino. Seguia a vida como se o dia de hoje fosse acabar amanhã e não tecia para si mais do que um ou dois planos para o que tinha que fazer no dia seguinte. Ir ao supermercado, pagar as contas, fazer o relatório do trabalho. Podia dizer que se sobrevivia na vida, era por sorte, não por planejamento. Mas podia se vangloriar de que vivia intensamente cada instante e agradecia a Deus ou deuses ou destino ou sorte ou o que quer que seja que trazia para ela pequenos prêmios.

O último destes presentes ela encontrou num café, entre um expediente e outro do trabalho, num almoço apressado. Ele ofereceu a única cadeira vazia do lugar. Ela aceitou e ali mesmo perdeu seu coração e começou a se preocupar com o tinha pela frente. Começou a contar os dias de trabalho, as horas de solidão e os minutos que faltavam para se encontrar com ele mais uma vez.

Voltava ao café todos os dias, sentava na mesma mesa e encontrava com os olhos o rapaz de cabelos desarrumados e óculos tortos. Sentavam juntos, falavam muito, comiam pouco. Somente durante os dias da semana. Em sua inocência, este tempo bastava.

Mas aos poucos, Olímpia encontrava motivos para planejar mais que o amanhã. Nela, cresceu um desejo maior que ela mesma, uma necessidade que vinha de outro lado que não só o de dentro. Olímpia queria agradar o outro, aconchegar o outro e guardar para sempre a sensação que tinha todos os dias naquele café. Queria levar para casa, queria ampliar para a vida, queria planos, queria filhos.

De repente, sua percepção mudou. Ela, que não conhecia raiva, passou a odiar os fins de semana sozinha, trancada no apartamento com o gato, sua coleção de livros e discos de vinil que ainda tocava na velha radiola herdada da avó. Ela, que não conhecia angústia, passou a ansiar pelo meio-dia, pelos minutos mágicos em que deixava de ser sozinha para ser dois e de dois ser mais que um mundo todo de sentimentos.  Ela, que de expectativa só conhecia a palavra, passou a esperar que o outro correspondesse e desejasse e amasse da mesma forma que ela. Ela, não pouco sabia da inveja, queria ter para si só aquela pessoa.
Para Olímpia, como para muitos de nós, encontro com o amor não foi feliz.

*Crônica publicada no Jornal do Tocantins, no caderno Arte e Vida do dia 09/02/2012.

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A transição entre o amor romântico e o amor autônomo*




Eu gostaria de estar presente no mundo daqui duas ou três gerações. Gostaria de ver, com o distanciamento necessário para uma boa avaliação, a época de transformação que vivemos. Não digo exatamente em tecnologia, mas nas relações sociais, mais especificamente, nas relações entre homens e mulheres.

Costumo dizer que estamos no olho do furacão, em plena fase de transição de uma modificação de padrões e valores no que diz respeito ao que é a condição feminina e masculina. Não é novidade e nem é ideia minha, especialistas como o falecido psiquiatra José Angelo Gaiarça e a sexóloga Regina Navarro já falam disto há anos. Mas o fato é que esta transição tem afetado diretamente os relacionamentos, onde homens e mulheres se perdem entre as convenções culturais e a liberdade latente de escolhas que os novos meios de comunicação e a difusão de culturas nos colocam à disposição.

Primeira barreira a ser rompida está no encontro da autonomia pessoal, da quebra do paradigma do amor romântico, em que nossa felicidade está ligada única e exclusivamente ao encontro do outro, ao nosso complementar, à alma gêmea. Nossa cultura ainda insiste, através da propaganda, do cinema e da literatura, a pregar que o ser humano só será completo junto com o outro. Não sou contra este encontro, o que mais me assombra é o vínculo de que desta relação, geralmente submissa, onde se abre mão de sonhos e características pessoais em prol de uma ilusão de "amor perfeito".

Cada vez mais os limites do que é feminino e masculino se tornam mais tênues e mais depressa começamos a ver que homens e mulheres podem ser ao mesmo tempo fortes e fracos, independentes e dependentes, amáveis e brutos, independente do sexo em que nasceram e do que a cultura os impôs, sendo cada dia melhor descritos apenas como humanos.

Há dois anos, escrevi para um blog, como colaboradora, sobre o nascimento da mulher má e do homem cafajeste, frutos de uma cultura em que de um relacionamento desfeito tudo o que pode sobrar é mágoa e rancor. Não se encaixar no que ditam as comédias românticas água com açúcar gera uma desilusão (veja desILUSÃO - algo fictício) tão grande que, ao terminar um relacionamento, o que sobra a homens e mulheres é descontar no próximo relacionamento toda esta frustração, tomados de uma amargura vingativa, ao invés de simplesmente aprender, como acontece em todas as outras áreas de nossas vidas.

Uma amiga uma vez me disse que gostaria que sua vida amorosa fosse tão simples como a sua vida profissional. Mas nem ela se dava conta que não queria isto, pois na carreira, é objetiva, tem dimensão do que quer, de suas habilidades e, caso fosse demitida, não gerava expectativas vãs, se aperfeiçoa e voltava ao mercado de trabalho, fortalecida. Enquanto num relacionamento, gerava uma expectativa de comédia romântica, onde tudo é aventura e fantasia, onde o homem certo chegará para resgatá-la de uma vida tediosa e solitária. Jogamos sobre o outro toda responsabilidade de tornar nossas vidas mais coloridas e interessantes, enquanto não fazemos isto por nós mesmos.

Passados os dois anos que escrevi o post, fui relê-lo. Lá eu dizia que, depois de um relacionamento caótico, poderia surgir uma mulher má ou uma mulher mais madura. O que diferencia a mulher que cresceu da mulher má é que uma continua tendo fé na humanidade, enquanto a outra, propositalmente, acha que o mundo, ou melhor, os homens, são todos maus. Elas querem ser cínicas. Elas acreditam, com fé, que os homens merecem ser maltratados. Estas mulheres estão dispostas a torear, a entrar no ciclo da competição, da guerra dos sexos.

Agora, a mulher que cresceu, aprendeu. Não só sobre relacionamentos, mas sobre si mesma. Do que é capaz, do que gosta, do que não gosta. Não acredito que isto seja se tornar mais "fria", "menos feminina". Acho que isto é se tornar mais consciente.

Quero continuar tendo fé na humanidade e acreditar, sempre, que se existem mulheres que cresceram, existem homens que também estão preocupados em ter relacionamentos melhores. Na época do post, escrevi que tinha desistido de torear. Que agora, queria andar junto. Hoje, depois de mais vivência, mais relacionamentos, literatura e autoconhecimento, digo mais: quero andar junto de mim mesma, amar como mais um aspecto interessante de minha vida, mas não como se do amor romântico dependesse minha felicidade.

*Artigo publicado na coluna “Tendências e Idéias” do Jornal do Tocantins de 10 de março de 2012.

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